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NÃO É BEM DE CRIATIVIDADE QUE O BRASIL PRECISA.     

José Predebon

(texto publicado na Gazeta Mercantil)

            Para abordar a questão da criatividade, vamos partir do antigo caso de um fabricante de máquinas para a indústria alimentícia. Pessoa inquieta e criativa, ele intuía que, se colocasse um diferencial em seu produto, as vendas seriam mais fáceis. Um dia, observando o desinteresse de suas crianças pela sopa, veio-lhe a grande idéia: macarrão em formato de letrinhas. Bastaria acrescentar na máquina a ferramenta que fizesse isso.

            O equipamento inovado fez sucesso. Com a mesma matéria prima, o mesmo processo de fabricação gerava o produto com uma qualidade a mais, um valor agregado. Se não foi exatamente assim, poderia ter sido, a ocasião em que se estabelecia o conceito da vantagem sem custo, via criatividade, que passaria a alimentar uma nova era no marketing, a do diferencial competitivo.

            Pois bem, no mundo onde as tecnologias cada vez mais são comodities, onde todas as geladeiras gelam adequadamente e todos os sabões lavam eficientemente, os diferenciais competitivos cada vez mais estarão nas vantagens adicionais, quase sempre vindas da inovação, filha da criatividade.

            Daí a razão porque as soluções produzidas pela imaginação criadora hoje tornam-se necessárias e valorizadas. Inovação, criatividade, invenções e desenvolvimento formam uma turma unida e procurada. E geram riqueza, claro, como pode testemunhar o milionário japonês Yoshio Nagamats, inventor do CD e do disquete, detentor do recorde mundial de patentes e correspondentes royalties.

            Agora, uma questão atual: os brasileiros podem concorrer nesse promissor campo, dada a notória afirmação que são naturalmente criativos?. E isso é fato ou crença?

O CRIATIVO POVO BRASILEIRO.

            Os atualmente intensos estudos do cérebro e da mente, que em seu trajeto já tornaram ultrapassado o tradicional conceito do Q.I., e nos trouxeram novidades como as “inteligências múltiplas”, talvez cheguem a fornecer um dia (longínquo) a média de potencialidade criativa do indivíduo.

            Podemos já afirmar que, em cima dessa competência, também serão viáveis estudos da média de criatividade humana em diferentes culturas, para então responder dúvidas como esta: o povo brasileiro é mais criativo que outros?

            Por enquanto, só especulando sobre o tema. Mas, municiados por variáveis conhecidas e intuídas, defendemos a conclusão afirmativa. Somos mais criativos.

            O índice de criatividade de um povo teria de ser avaliado pelo seu comportamento e pelos “produtos” de seu desempenho. Mas não existe aí uma relação matemática, pois muitas outras variáveis interferem sempre, e ainda que a inovação e criatividade pudessem ser consideradas um vetor de progresso, elas não se tornariam obrigatoriamente um determinante de sucesso.

            Como exemplo disso, lembremos que os Celtas do grupo La Tène são considerados, pelo legado artístico que deixaram, um dos povos mais criativos da história. Mas foram logo dominados pelos Romanos, e aí conjeturamos se a riqueza e a organização destes, e não a criatividade, propiciaram sua maior força bélica, ou se os vencedores eram tão criativos quanto os vencidos, e apenas não exerciam tanto a imaginação no campo das artes, como os outros. Especulações, claro.

            Quanto à criatividade dos brasileiros, a análise pode ser feita com mais proximidade e menos conjecturas, e de saída com a pergunta: por que nossa competência inovadora na música e na arquitetura não se estende a todos os outros campos, trazendo vantagens e facilidades para superar nossos famosos problemas? Existirão também “criatividades múltiplas”?

A RAIZ TORTA.

            Este raciocínio leva àquela recorrente hipótese de que a nossa cultura, berço da moral vigente e seus valores, foi historicamente construída partir de uma variável, digamos, imperfeita: fomos “fundados” por aventureiros aéticos, e não por gente que procurava uma nova pátria, como os ingleses do Mayflower. Tivemos uma colonização predatória, com o espírito de “fazer a América” e depois voltar para casa. Teria nascido assim uma cultura sem comprometimento comunitário, até onde é possível isso, já que ética social é ferramenta de sobrevivência.

            Também pesa sobre a nossa formação religiosa a acusação de cumplicidade nesse processo, com uma tácita venda de indulgências, aquela praticada abertamente na velha Europa. Então ficou no Brasil Colônia, lá no cerne da questão, aquela idéia expressa em música de que “não há pecado abaixo do equador”. À elite que se formava, tudo era permitido. Colocaram o respeito à lei apenas num discurso cínico, cristalizado e prevalecente até hoje, enquanto a realidade nada precisava ter com as normas.

            Até onde isso seja verdade, ou quase, identifica-se a raiz de nossa personalidade flexível, irreverente, ousada. Esses adjetivos tem dois lados, principalmente quando aplicados a temas sociais. Tornam-se graves defeitos de um ponto em diante. Assim vemos que a falta de espírito comunitário, e nossa carência de ética e cidadania são a face ruim da mesma moeda que nos dá uma capacidade ótima para criar situações novas, indo além do que a lógica pode prever. Vem dar no famoso jeitinho brasileiro, que nos torna até capazes de exportar software melhorado para o seu produtor original, o que tem acontecido bastante.

            Especulações e reflexões como essas nos fazem chegar a conclusões provisórias mas claras: nossa cultura favorece o exercício da criatividade, nos tornando um povo capaz de inovar. Mas, por outro lado, nos faz incapaz de nutrir respeito por leis, ética, e muito menos por organização e normas. A capacidade criativa  resolve problemas pontuais e individuais, mas a incapacidade de se manter nos trilhos dificulta nosso sucesso como comunidade.

Em resumo, infelizmente nos sobra criatividade e falta disciplina, irmã da ética. E não só a ética do proceder bondosa e honestamente, mas aquela que Edgar Morin batizou como a ética do gênero humano. Em um texto encomendado pela Unesco, e intitulado Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro, ele coloca esse sentimento ligado ao tripé indivíduo/sociedade/espécie como necessidade e carência atual, e sem o qual permanecemos como frios agentes de um sistema desumano. Não é o que acontece por aqui?

Pensando no país onde viverão nossos filhos e netos, sentimos como cuidar disso nos faz falta hoje, para conseguirmos mudar a direção perversa em que estamos viajando - com bastante criatividade, mas sem ter ainda um bom horizonte à frente. 

         
jose@predebon.com.br